Vítimas não sabem distinguir o que é carinho e o que pode ser abuso. No Pará, crianças e adolescentes recebem ajuda de médicos, psicólogos e assistentes sociais do projeto Pró-Paz.
“Eu cheguei da feira, e ela disse assim: ‘Mamãe, eu tenho uma coisa horrível para falar. Toda vez que a senhora sai, meu irmão sai do quarto dele e vai para o meu. E quando chega lá, ele deita do meu lado na minha cama'”, lembra a mãe de uma vítima.
Acolher a criança ou o adolescente abusado sexualmente pode significar perigo para médicos, psicólogos, assistentes sociais e até mesmo para a polícia. No Pará, eles trabalham protegidos por grades.
O grande desafio de quem trabalha no Pró-Paz é deixar quem chega muito à vontade. Confiante de que no lugar pode-se contar tudo, sem medo, com segurança. Foi o que fez uma mãe não temer. Assim que soube do que o enteado, de 17 anos, estava fazendo com a irmã, de 5, não pensou duas vezes e procurou o Pró-Paz.
“Eu sempre disse que ele era o filho que eu não tive. Eu gostava dele. Meu esposo ficou contra mim”, conta a mãe da vítima.
“Ela não esquece a proteção que teve daquela pessoa. Não esquece as brincadeiras, o afeto. Só que ela começa a achar que aquilo está errado porque o abusador a desrespeitou. Então, fica ambíguo. É neste momento que ela começa a perguntar às pessoas se aquilo que ela está vivenciando é correto”, explica a psicóloga Ana Júlia Góes.
Pode ter sido o motivo que levou a filha de um homem, com apenas 6 anos, a contar o que o padrasto estava fazendo na ausência da mãe.
“Eu perguntei para ela o que foi que aconteceu. Disse que ela podia confiar em mim porque eu era amigo dela. E ela disse: ‘A mamãe chegou tarde do trabalho e foi para o banheiro. Então, ele deitou na cama e me chamou'”, diz o pai da vítima.
“Elas não aceitam que o abuso aconteceu, não acreditam na criança. Por amor ao companheiro, não acreditam nos filhos. A mãe que nega vai negando até o fim, mesmo que o filho insista. Elas fogem com os companheiros ou maridos e abandonam os filhos”, diz a delegada Simone Machado.
Uma menina sabe o que isso significa. Ela ficou grávida do padrasto aos 11 anos. “Quando ele começou a me violentar, eu logo disse para a minha mãe, mas ela falou que era mentira”, lembra a vítima, que, com a ajuda da própria mãe, perdeu o bebê. Mas os abusos continuaram. Ela ficou grávida outra vez. E a mãe preferiu continuar com o acusado abusador e abandonou a filha. A menina foi socorrida pelo Conselho Tutelar e hoje mora só com o filho.
Têm mães que dizem não ter como sobreviver sem o sustento do companheiro. Outras, moradoras do interior da floresta, justificam os crimes apelando para o folclore. Conta uma popular lenda amazônica que em noite de festa um boto rosa sai do rio e se transforma em um homem muito bonito. Logo encanta as moças. Dança com várias delas e volta para as profundezas das águas. Depois, muitas dessas mulheres aparecem grávidas. São os filhos do boto. Pode parecer incrível, mas esta é a desculpa que muitas famílias encontram para não revelar o nome do abusador sexual.
De tanto escutar os mesmos argumentos de pais que abusam de filhas, a coordenadora-geral do Pró-Paz, Eugênia Fonseca, afirma: “O pai diz assim: ‘Eu criei e eduquei. Eu tenho que ser o primeiro’. Ele se acha no direito de abusar da filha. Precisamos avaliar as famílias temos hoje, quais são os valores morais envolvidos, de que forma elas estão olhando as crianças? É uma questão muito grave”.