Governo Bolsonaro quer revogar portarias que sustentam política de saúde mental

O Ministério da Saúde deve revogar uma série de portarias que estruturam a política de saúde mental no país e que vigoram desde a década de 1990.

Entre as mudanças propostas, está o fim do programa De Volta para Casa, que visa a reinserção social de pacientes com transtornos mentais.

Seriam extintas também as equipes que apoiam a transferência de moradores de hospitais psiquiátricos para serviços comunitários.

Na avaliação de integrantes do grupo técnico que estuda as mudanças, esses serviços seriam atribuições da assistência social, e não da saúde.

Há uma discussão sobre o financiamento do programa Consultório de Rua, que atende a população em situação de rua, mas o Ministério da Saúde nega que ele vá ser extinto.

Entre as propostas, está a de que os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), hoje a base da política de saúde mental, façam apenas reabilitação, possivelmente deixando o atendimento psiquiátrico para outro serviço. Cogita-se também a extinção dos Caps voltados aos usuários de álcool e drogas.

A ideia seria criar serviços específicos para pessoas com diagnóstico de dependência e outros transtornos psiquiátricos.

A proposta afrouxa ainda o controle sobre as internações involuntárias, ao revogar portaria que determina a comunicação prévia ao Ministério Público.

O projeto enfrenta forte resistência entre a comunidade acadêmica que estuda políticas de saúde mental e os gestores de saúde.

Segundo Jurandir Frutuoso, secretário-executivo do Conass, o conselho ainda não recebeu uma proposta oficial do Ministério da Saúde sobre o tema. Portanto, diz ele, não poderia falar sobre o tema.

Para o psiquiatra Leon Garcia, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, as propostas são muito graves e, se aprovadas, vão desmontar todo o aparato construído para dar fim aos manicômios no país.

A transferência de ações que hoje são atribuições da saúde mental para a área da assistência social também é muito preocupante, segundo ele.

Na sua opinião, as propostas vão no sentido de esvaziar o lugar da atenção psicossocial, da reabilitação e do trabalho comunitário e reforçar o trabalho da psiquiatria.

“Essa discussão foi feita ouvindo só uma parte dos psiquiatras do Brasil. A ABP não representa a totalidade dos psiquiatras brasileiros. Está tentando, com o governo que está aí, desmontar uma política de Estado via portaria. É uma esperteza, porque aí não precisa fazer uma discussão com a sociedade, com o Congresso.”

Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP, refuta esses argumentos. Diz que as diretrizes para uma nova política de saúde mental têm apoio de entidades como o CFM (Conselho Federal de Medicina) e a AMB (Associação Brasileira de Medicina) e estão previstas em norma do Ministério da Saúde de 2017.

“Precisam ser amplamente implementadas para que a desassistência aos pacientes com transtornos mentais, fruto de ideologias irresponsáveis, seja finalizada em nosso país.”

Segundo ele, há um excesso de portarias, que não dariam diretrizes necessárias aos gestores públicos. “São cento e poucas portarias, um negócio absurdo, improdutivo. Tem que dar um caminho para as prefeituras.”

De acordo com o Conselho federal de Enfermagem (Cofen), “para a Enfermagem brasileira, essa tentativa representa o retorno do modelo psiquiátrico hospitalocêntrico, asilar e centralizador que interfere na dignidade da pessoa humana ao cercear o cuidado em liberdade e restringir a oferta de cuidados e tratamentos em detrimento a um Sistema de Saúde Mental Nacional exitoso, norteado pelo processo de Reforma Psiquiátrica orientada pelos princípios da Desinstitucionalização e Reabilitação psicossocial.”

Ao mesmo tempo, ele diz que sente resistência dos conselhos de secretários da saúde (Conass e Conasems). “Parece que não querem que mude, que a coisa funcione. Querem continuar tendo 2.000 e tantos Caps, aí recebem um monte de dinheiro do ministério e não querem que testem se os serviços têm eficiência, eficácia. Lugar nenhum do mundo tem Caps.”

Silva defende a criação de ambulatórios de saúde mental. “O que você faz no sistema privado? Você pega, liga, marca consulta e vai lá. Por que o sistema público não pode imitar o sistema privado?”

Diz ainda que “ninguém precisa passar um dia dentro de Caps”. “Como é no meu consultório? Alguém passa o dia lá comigo? Não. A pessoa faz uma consulta e vai tocar a vida.”

Para o psiquiatra Marcelo Kimati, professor de saúde coletiva da Universidade Federal do Paraná, esses argumentos ignoram a vasta produção científica que atesta a eficiência do modelo de atenção em saúde mental vigente no país.

Segundo ele, é difícil prever os impactos a médio e longo prazo que essas propostas possam ter, se aprovadas. “É uma retomada de um modelo superado no país há mais de 20 anos e que pode reproduzir o holocausto promovido pelos manicômios no país.”

O CNS (Conselho Nacional de Saúde) publicou manifesto repudiando as propostas de revisão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e de mudanças no modelo assistencial em saúde mental no país.

No documento, o conselho diz que a política nacional de saúde mental vem sofrendo ataques por meio do desmonte da Raps e do fortalecimento de políticas segregadoras, marcadas pela ascensão das comunidades terapêuticas e edição de normativas e de financiamento público voltados à internação da população em situação de rua e de adolescentes.

“Isso desconsidera o processo histórico e político-legislativo de avanços de uma política desinstitucionalizadora e antimanicomial, conquistada por ampla mobilização e participação social.”

O CNS reitera que qualquer ato que se relacione à Política Nacional de Saúde Mental deve respeitar os preceitos instituídos, devendo ser discutido democraticamente nas conferências nacionais temáticas e nas instâncias coletivamente representadas.

Ministério diz que intuito é tornar assistência mais resolutiva

Em nota, o Ministério da Saúde reforça a questão do grande número de portarias para tratar do assunto e afirma que muitas delas estão obsoletas, o que confunde gestores e dificulta o trabalho de monitoramento e consolidação das políticas de saúde mental.

Diz ainda que o intuito da revisão é o de tornar a assistência à saúde mental mais acessível e resolutiva, já que há muitos indicadores negativos nessa área, como a elevação das taxas de suicídio e de lesões autoprovocadas, o crescimento da população de rua com transtornos mentais graves, o aumento do uso de drogas e dependência química no país, entre outros.

O ministério informa também que instituiu um grupo de trabalho com representantes do Ministério da Cidadania, CFM, ABP, Conass e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), encarregado de analisar, discutir, aprimorar, revogar e criar novos instrumentos para a garantia do cumprimento da Nova Política Nacional de Saúde Mental, aprovada em dezembro de 2017.

Ressalta ainda que, na nova atualização proposta, não há sugestão de fechamento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e dos Consultórios de Rua.

“Sobre as Residências Terapêuticas, por não se tratarem de equipamentos médicos e serem destinadas, exclusivamente, ao acolhimento e reabilitação social, discute-se a sua transferência para o âmbito do Ministério da Cidadania”, diz a nota.

Segundo o ministério, estão também em fase de elaboração as seguintes ações: criação de serviço telefônico para suporte em saúde mental (196) e capacitação de profissionais para atendimento nessa linha; treinamento de profissionais da atenção primária à saúde em consulta psiquiátrica; e capacitação de médicos e enfermeiros do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para atendimento de urgência a doentes psiquiátricos.

“O Ministério da Saúde entende que a construção de uma rede de assistência à saúde mental essencialmente segura, eficaz, integral, humanizada, com abordagens e condutas baseadas em evidências científicas e norteada por especialistas da área da saúde é um processo organizacional contínuo, que requer monitoramento constante e zelo com o investimento público”, conclui a nota.

Hospitais psiquiátricos

– Revoga mecanismos de fiscalização e estímulo a redução do tamanho dos hospitais psiquiátricos

– Extingue equipes que apoiam a transferência de moradores de hospitais psiquiátricos para serviços comunitários

Caps

– Propõe que façam apenas reabilitação, possivelmente deixando o atendimento psiquiátrico para outro serviço

– Cogita extinção dos Caps voltados aos usuários de álcool e drogas

Atendimento comunitário

– Cogita transferência dos serviços residenciais terapêuticos e o Programa De Volta para Casa para assistência social

– Extingue serviços para atendimento à saúde da população em situação de rua

Internações involuntárias

– Afrouxa controle sobre internações involuntárias, revogando portaria que determina comunicação ao Ministério Público

Gestão e articulação da política de saúde mental

– Dissolve instância que reúne os principais gestores da política de saúde mental do país.

– Revoga composição do Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes.

Saúde mental indígena

– Revoga diretrizes atuais

Política de drogas

– Transfere responsabilidades para o Ministério da Cidadania

– Define abstinência como objetivo principal e redução de danos como complementar

– Interrompe distribuição de insumos para evitar transmissão de doenças durante uso de drogas

– Retira a possibilidade de atendimento de pessoas com dependência química em Caps

– Defende a criação de serviços específicos para pessoas com diagnóstico de dependência e outro transtorno psiquiátrico

– Transfere financiamento e regulação de unidade de acolhimento para o Ministério da Cidadania

Fonte: Planilha do grupo técnico do Ministério da Saúde

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