Considerações sobre o livro ”Cartas a um jovem terapeuta” de Contardo Calligaris

O livro toca em pontos fundamentais, mas que raramente são discutidos no meio acadêmico. Seus “conselhos” podem ser de grande interesse aos psicoterapeutas iniciantes, mas também pode servir de reflexão para que todos os profissionais “psis” possam repensar seus conceitos e práticas.






Logo de início fala sobre a “Vocação Profissional”, e aborda a importância de trabalharmos no sentido de produzir autonomia no paciente, onde menciona que “nenhuma psicoterapia…, deveria almejar a dependência do paciente”, caso contrário estaríamos substituindo a doença por um vício. Quanto maior liberdade e independência o paciente experimenta, maior é o indício de que a terapia segue no caminho correto.
Isso contribui também para que o terapeuta avalie seu caráter, pois se deseja amor e admiração deve procurar outra profissão que ofereça esse status. Com base nisso o autor lista os traços de caráter fundamentais para quem quer se tornar psicoterapeuta. São eles:





“1) um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes que sejam de você”;
2) “uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito”. Isso requer um total abandono de nossas crenças e modelos preestabelecidos, para que possamos estar abertos ao mundo interno de quem está diante de nós.
3) “… uma certa quilometragem rodada”. Neste caso, não basta a experiência de vida, mas também que o terapeuta perceba que as questões apresentadas pelos pacientes, em algum momento também podem ter permeado a sua vida. É importante que o futuro terapeuta já tenha tratado suas questões na sua terapia pessoal e possa facilitar o processo quando esbarrar com questões parecidas em seu consultório, mas acima de tudo, que se permita ter liberdade de ser quem verdadeiramente é e que saiba lidar com suas escolhas e desejos.
4) “… uma boa dose de sofrimento psíquico”. É importante que entremos em contato com nossas dores, que possamos elaborá-las em nossa análise, aprender com a experiência e perceber também que o terapeuta não precisa ser um exemplo de “normalidade” ou de “perfeição”. O terapeuta também pode sofrer e sentir as dores da alma e isso mostra um indivíduo sensível, que pode entrar em contato com a dor do outro e se aproximar com mais empatia.
O livro segue tocando em questões que envolvem limites, “normalidade”, preconceito e confiança. É lançada uma questão interessante, que me parece extremamente pertinente para os dias atuais: “Poderia um travesti ser psicoterapeuta ou psicanalista? E você iria num ou numa terapeuta travesti?”.
Reflitamos: as virtudes de uma pessoa, tais como honestidade, respeito, solidariedade, confiança etc., estão relacionadas com a orientação sexual ou com o caráter?
Certa vez li uma frase que dizia: “Quando perdemos o direito de ser diferentes, perdemos o privilégio de ser livres”. Sendo assim, acredito que fazer terapia com um travesti – psicólogo, psicoterapeuta ou psicanalista – significaria somente ser atendido por um profissional qualificado para tal função. A pergunta no início do parágrafo, que poderia sugerir algum tipo de preconceito, envolve questões e fantasias do senso comum e estereótipos que enrijecem uma visão de mundo, impedindo que se possam considerar outros caminhos. Ou seja, numa visão limitada, a questão deixa de ser a qualidade do serviço oferecido e se transforma nas expectativas neuróticas que desenvolvemos dentro da nossa cultura.
Do outro lado poderíamos questionar que tipo de paciente o terapeuta nunca deveria aceitar?
Essa questão envolve um bom grau de autoconhecimento, pois precisamos conhecer aquilo que nos toca e nos abala de algum modo. Se algo nos parece inconcebível, temos de saber que isso será um grande obstáculo no processo terapêutico e o mais indicado seria encaminhar o paciente para outro profissional.
Nesse sentido, Calligaris fala sobre a angústia do primeiro atendimento e destaca a importância do fator humano no contexto profissional, onde o que conta também são as experiências de vida do terapeuta, suas curiosidades filosóficas, existenciais e sociais que vão além do setting terapêutico.
As razões que fazem com que um paciente nos escolha como terapeuta podem ser mais complexas do que imaginamos, porém, devemos nos ocupar inicialmente em ouvir, estabelecer o vínculo terapêutico, a confiança, ser nós mesmos sempre, usando a teoria como pano de fundo e o encontro como tela principal, nos colocando diante do paciente com o mesmo espírito, energia e vontade que os iniciantes possuem.
Mas e se neste encontro o terapeuta se apaixona pelo paciente?





Acima de qualquer código de ética e conduta é importante que pensemos no seguinte: a função do terapeuta é proporcionar o encontro do ser humano com ele mesmo, facilitar a tomada de consciência mental, corporal e social. A terapia é um processo de educação para a vida. O paciente aprende sobre ele mesmo, sobre os seus sintomas, sobre sua relação com o mundo, sobre os seus desejos e suas limitações. A partir da compreensão destes fatores é possível o processo de transformação.
Sabendo disso podemos nos fazer outra pergunta: seria de alguma ajuda, para o processo terapêutico, informar ao paciente que o terapeuta possui outros interesses nele (a) que fogem da relação terapêutica? Acredito que, no mínimo, duas coisas iriam ocorrer: confusão e ilusão, de ambas as partes. O terapeuta teria que investigar, em sua terapia pessoal, os caminhos da sua contratransferência. Do mesmo modo, deve estar atento ao manejo da transferência, citada no livro como amor de transferência, pois é natural que afetos se dirijam ao terapeuta, porém, esses afetos devem ser utilizados em benefício do processo terapêutico e da melhora do paciente, sem que se deixe de ter em mente que esta fase deverá ser superada para que a transferência não se torne uma resistência à terapia. Nesse ponto voltamos à questão da idealização que se faz ao terapeuta. Toda idealização foge à realidade e nos conduz a um apaixonamento equivocado. Ou seja, quando terapeuta e paciente resolvem investir em uma relação amorosa, ambos estão equivocados e a função do terapeuta é justamente reduzir os equívocos que possam surgir. Isso mostra a importância da terapia pessoal e das sessões de supervisão que um terapeuta deve se submeter.
Isso é outro ponto abordado no capítulo 5, sobre a formação do futuro terapeuta e menciona que o essencial na constituição do terapeuta ocorre fora do universo acadêmico. A análise pessoal faz parte desta formação, que envolve a descoberta e o entendimento das dores e das angústias que circundam também o psiquismo do terapeuta. A dedicação e os estudos de um terapeuta em formação também devem ir além dos estudos universitários que buscam apenas dar conta daquilo que foi ensinado. Por isso é importante que o futuro terapeuta pesquise e escolha a abordagem que mais se identifica e que possa também ter algum conhecimento dos instrumentos diagnósticos, dos princípios ativos dos remédios psicotrópicos e possa ter passado pela experiência de trabalhar com psicóticos e toxicômanos.
Além destes “requisitos”, é importante que o futuro terapeuta não se limite a estudar uma única técnica e que perceba que sua orientação não é uma ideologia e ele não é um reprodutor de doutrinas. É no contato com as diferenças que podemos aprender, crescer e nos reavaliar. É estudando sobre diversas abordagens que podemos conhecer as contribuições e contradições de cada uma.
E como lidar com a pressa em relação a cura no processo terapêutico? Será que a queixa que o paciente apresenta contém a essência daquilo que provoca mal-estar nele? Será que a demanda que ele traz indica, de fato, o caminho que devemos seguir? O autor pede calma, paciência para que possamos penetrar a camada superficial e seguir em direção ao núcleo. “Uma psicoterapia é uma experiência que transforma…”; Na saída, não somos os mesmos sem dor; somos outros, diferentes”. Toda transformação requer tempo. Não podemos ter pressa e precisamos ter o entendimento de que aliviar os sintomas pode não ser o melhor caminho, pois podemos perder o fio que liga a causa àquilo que emerge. Afinal, é assim que agem os psicotrópicos, promovem “bem-estar”, mas não atingem a questão que causou o desconforto.
Isso nos leva para a discussão tratada no capítulo nove, “Conflitos Inúteis”, onde o autor trata da falsa disputa entre psicoterapia e farmacologia. Calligaris nos dá como exemplo um paciente deprimido que, uma vez medicado, pode voltar a ter condições de participar ativamente de sua psicoterapia. Para isso é importante que o terapeuta perceba que seu paciente dificilmente poderia dar continuidade à uma terapia se não fosse motivado pela correção química nos níveis de serotonina em seu organismo.
O remédio, neste caso, serve como fonte de energia para que o paciente possa iniciar a investigação das causas de sua depressão no processo terapêutico. Aos poucos a medicação deverá ser retirada, para que o paciente possa entrar em contato com a sua dor e elabora-la a partir de suas lembranças e respectiva carga emocional.
Em síntese, o remédio pode ser útil, mas acreditar que somente o psicofármaco ou o conhecimento neurocientífico poderá resolver, é uma ingenuidade.
No capítulo sete, Calligaris trata de uma das questões mais importantes para quem quer viver do ofício de psicoterapeuta. Como captar mais pacientes? E a resposta parece simples: “faça-se conhecer”. Porém, os mais conhecidos nem sempre são os mais eficazes. Produzir ou reproduzir material em cima de uma teoria não é o mesmo que apresentar casos em que houve sucesso terapêutico. E é nesse sentido que o autor nos leva a compreender que, mais importante que alimentar nossos egos e estar em evidência nos meios acadêmicos é desenvolver um trabalho que tenha utilidade social, é se comprometer em compreender e aplacar a dor do paciente, fazendo com que ele experimente cada vez mais liberdade e autonomia.
Dando continuidade, Calligaris fala sobre as questões práticas que envolvem a psicoterapia. Inicia falando sobre as regras e cita a associação livre como a primeira delas, porém, é coerente ao falar que esta regra serve para autorizar o paciente a falar abertamente, não para obriga-lo a dizer o que você quer ouvir.
As duas regras seguintes tratam de observações que eram passadas pelo próprio Freud. Durante a terapia, o paciente deve evitar tomar decisões cruciais e irreversíveis, pois o tratamento mobiliza fortes emoções. É aconselhável também que o paciente não fale sobre sua terapia com amigos e familiares, pois estes podem “sabotar” a terapia com medo de que o tratamento modifique as relações existentes.
Sobre o setting terapêutico e a utilização ou não do divã, o autor dá quatro conselhos: 1) “aja de maneira que sua escolha não seja forçada”. 2) “Uma análise acontece pelas palavras trocadas e pelas relações que elas organizam, não pelas disposições dos traseiros dos interessados”. 3) ”lembre-se de que nem o paciente nem o terapeuta estão presos no divã ou na poltrona por parafuso algum. Um paciente deitado há tempo pode decidir um dia que há algo errado que ele quer dizer olho no olho”. 4) manter um setting rígido, sempre da mesma maneira, pode se tornar uma condição do tipo: “se esta paciente não deitar no divã, não haverá análise possível”. Nesse caso será necessário se questionar sobre a funcionalidade do que está sendo adotado.
E no caso das entrevistas preliminares, como seguir de maneira adequada e eficiente? O fundamental é que possamos facilitar o discurso do paciente, que deverá conter sua história e sua queixa e que nos ajudará também a ter um melhor entendimento do caso. Nesse momento, o autor lança uma questão interessante que não será dirigida ao paciente. A questão é feita ao próprio terapeuta e reflete sobre podermos, de fato, auxiliar o paciente. Auxiliar, neste caso, significa poder estabelecer uma aliança e ter um certo entusiasmo ao atende-lo.
A segunda pergunta é direcionada ao paciente: “o que o paciente espera da terapia que começa?”. O sentido da pergunta é compreender “por quais caminhos o paciente está decidido a obstaculizar seu desejo”, pois nem sempre a afirmação do paciente revelará o seu desejo real escondido debaixo de suas defesas.
O ideal é que pudéssemos nos questionar, de tempos em tempos, “o que mudou desde o início da terapia?” “Qual foi o caminho percorrido?” “Onde estamos agora?” “É diferente de quando estávamos no começo?” Esse procedimento nos permitiria avaliar o andamento da análise e nos faria retornar regularmente a pergunta inicial, pois “é frequente que a resposta do paciente mude, que ele passe a esperar de sua terapia algo diferente do que ele esperava no começo” ou que já tenha superado sua queixa inicial.
Sobre a duração da sessão, Calligaris diz que “este não parece ter sido um fator decisivo no sucesso ou insucesso das curas” e nos encoraja a criarmos a nossa própria maneira de atender.
Quanto à supervisão, o autor nos dá duas indicações. A primeira diz que a supervisão não deveria custar mais do que se ganha com o paciente cujo caso está sendo supervisionado. A segunda indicação fala sobre reconhecer um bom supervisor e diz que a supervisão deve inspirar confiança nos atos do terapeuta, para que este possa se autorizar a atender.
Na sequência, Calligaris trata da questão de insistirmos na evocação do passado do paciente e toca num ponto fundamental para o nosso entendimento: um evento, ocorrido na infância, nos marca somente na sua repetição, quando é vivido mais de uma vez durante a vida, ou seja, revivido. É somente na repetição de um evento que poderemos experimentar uma angústia desamparada ou iniciar uma tentativa de evitar o desprazer causado pelo primeiro evento. Sendo assim, conhecermos o passado do paciente nos ajudará a entender como se formou determinado trauma, como o paciente se relaciona com esse trauma no presente e como poderemos encontrar um novo sentido para o que aconteceu.
Por fim, o autor aborda novamente a questão da identificação com o terapeuta através da idealização que, de alguma forma, sempre ocorre. E se temos uma responsabilidade devido essa idealização, ela é a de ser o mais livre possível, o mais próximo de nosso desejo que conseguirmos, para que o paciente possa ter, nesse ideal criado por ele mesmo, uma fonte de inspiração que o tornará livre para viver o seu próprio desejo. Lembrando que não existe uma fórmula de normalidade, o que existe é uma maneira de ser que pode exprimir liberdade, autonomia, coragem, intensidade, sinceridade e entrega nas relações. A vida nos traz sabores e dessabores, altos e baixos, mas o importante é viver a experiência, sentir as emoções e encarar o que vier.
Uma última dica: “seja humilde”. Respeite os limites dos seus pacientes. “Haverá os que se irritam porque você não os abraça, e os que não aguentam ser tocados”. A mudança vem com o tempo. “Avance desarmado”.

Abraços

Alexandre Salvador
Psicólogo – CRP 05/46554
www.alexandremsalvador.com

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Psicólogo clínico, psicoterapeuta corporal, ávido leitor, pai coruja, bom humor acima de tudo, um buscador dos mistérios da vida... www.alexandremsalvador.com

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